O corpo de Jorge repousava em seu leito em um sono dos mais profundos e foi
quando o seu espírito libertou-se parcialmente do invólucro carnal que ele
recebeu uma visita inusitada: um homem alto, com barba branca, rala e olhar
sereno o aguardava de braços cruzados.
Fazia pouco menos de um ano que Jorge entrara na corrente mediúnica de um
terreiro de umbanda onde atuava como cambone. Apesar de amar a umbanda e os
trabalhos das entidades ele, devido ao seu gênio cético, sentia-se pouco à
vontade para participar de trabalhos envolvendo obsessores.
A cada trabalho deste gênero que acontecia no terreiro ele observava
atentamente a tarefa dos doutrinadores e das entidades junto a estes irmãos
necessitados sendo que uma dúvida raramente saia de sua cabeça: “Será que
tudo isto que vejo é realmente verdade?”.
Quando esta dúvida tornava-se por demais exacerbada em alguma gira o caboclo
a quem ele cambonava dizia-lhe:
— Firmeza no ponto filho! Firmeza nos trabalhos!
Daí então ele procurava afastar as dúvidas e concentrar-se nas orações, mas
ao sair do terreiro, aos términos das reuniões, ele invariavelmente dizia
aos seus irmãos de fé em tom jocoso: sou discípulo de São Tomé!
Caboclo Rompe-mato era a entidade a quem Jorge cambonava e que ali, dentro
daquele terreiro, tinha a incubência de comandar as rodas de descarrego.
Ele observava o sentimento crescente de dúvida em seu cambone a cada reunião
até que em uma gira a entidade pediu a ele que assentasse no banco disposto
onde aconteciam os trabalhos especiais de descarrego e em que chegavam,
quando necessário, espíritos obsessores e sofredores.
Jorge já se dirigia ao banco determinado pelo caboclo quando ainda tentou
argumentar com a entidade:
— “Seu” Rompe-mato, eu estou super-bem na minha vida pessoal, familiar, nos
estudos, no trabalho e não sabia que estava com problemas junto a espíritos
obsessores e sofredores!
— Fio, não vamos ser pejorativos com o sofrimento alheio, chamemos o
espírito que aqui se manifestará a implorar perdão como: irmão.
Jorge estava, de fato, sentindo-se muito bem e não entendia o porquê da
realização daquele trabalho, entretanto em tom respeitoso ele respondeu à
entidade:
— Sim senhor”
— Procure não usar muito o intelecto; ao invés disto sinta o amor divino em
seu coração e procure oferta-lo ao irmão que aqui se manifestará tão
necessitado do seu perdão. Estamos combinados?
— Sim senhor!
Jorge respondera ao caboclo sem entender o porquê da ênfase que ele dera a
necessidade de perdão por parte de seu cambone por que sendo Jorge uma
pessoa que não era rancorosa então ele não haveria de ter dificuldades em
conceder o perdão a qualquer espírito que lhe solicitasse isto.
Mesmo sentindo-se um discípulo de São Tomé, Jorge sentou-se no banco e em
poucos minutos um espírito sofredor manifestou-se em um médium que não era o
mesmo que cedia o corpo físico para a manifestação do caboclo Rompe-mato.
O sofrimento do espírito era imenso e muitas lágrimas eram vertidas enquanto
ele pedia perdão a Jorge:
— Perdão! Perdoe-me Ernesto! Hoje sei que o que eu fiz foi errado, mas na
época eu julgava que era amor! Perdão pelo amor de Deus!
Jorge não conseguia entender nada do que acontecia, pois desde a
manifestação deste espírito, no médium de nome Carlos, um ódio inexplicável
brotou do seu coração em relação ao referido sofredor.
Não suportando a curiosidade e já começando a pensar que estava
enlouquecendo Jorge abriu os olhos e olhou para o espírito manifestado em
Carlos, mas só que ele estranhamente não conseguia ver o médium apenas o
espírito incorporado; foi quando o caboclo Rompe-mato determinou-lhe:
— Feche os olhos fio! Abra somente o teu coração e procure fazer o que
combinamos!
— Sim senhor!
O espírito berrava com todo o seu sofrer:
— Olhe pra mim Ernesto! Perdoe-me, daqui eu vejo que Renilda, nossa
companheira de outrora, está de volta ao seu lado! Você não precisa
continuar a odiar-me! Perdoe-me!
Enquanto tudo isto acontecia o caboclo Rompe-mato estendeu a destra na
direção do chacra cardíaco de Jorge irradiando energias que funcionavam como
um bálsamo nas emoções de seu cambone.
Foi somente assim que Jorge conseguiu respirar melhor, abrandar as emoções,
abrir novamente os olhos e balbuciar para o espírito manifestado em Carlos:
— Eu te perdôo! Vá em paz!
O espírito, assim, virou-se em direção ao caboclo e perguntou:
— E então, falta pouco para eu ser livre?
— Sim meu irmão, em breve você será liberto.
— Obrigado, obrigado, obrigado!!!
Foi o que respondeu o espírito em questão antes de desincorporar.
A gira, então, prosseguiu normalmente até o seu término.
Os médiuns despediram-se com abraços fraternais antes de retornarem para os
seus lares.
Jorge chegou a sua casa e, enquanto tomava um banho, encontrava-se deveras
impressionado com o que lhe ocorrera na gira, mas a fome era ainda maior que
sua curiosidade e ele procurou não demorar-se para lanchar.
Após uma leve refeição um sono pesadíssimo o acometeu e ele foi preparar-se
para deitar.
Somente quando o sono chegou foi que o seu espírito, então semi-liberto do
corpo carnal, reparou na visita que recebia em seu quarto: era um homem
alto, com barba branca, rala e de olhos amorosamente serenos que o aguardava
de braços cruzados.
Jorge fitava os profundos olhos azuis deste homem quando este lhe disse:
— E então, vamos?
— Você desculpe-me, mas vamos aonde se eu nem mesmo lhe conheço?
— Seus olhos podem não me reconhecer, mas o seu coração sim. Feche os seus
olhos e sinta quem eu sou!
Jorge fechou os olhos e então o homem estendeu sua destra na direção do
chacra cardíaco dele enviando ondas de energia que subiam em direção ao
chacra frontal, na direção do “terceiro olho”, como se estivesse a
estimulá-lo.
Então, tomado por incontida emoção, foi que Jorge ajoelhou-se
respeitosamente e disse ao homem:
— Meu coração o reconhece e saúda senhor caboclo Rompe-mato!
— Deixe de formalidades meu filho! Faça como o de costume em dia de gira:
chame a mim de “Seu” Rompe-mato.
— Sim senhor!
— E então? Vamos?
— O senhor me desculpe “Seu” Rompe-mato, mas vamos aonde?
— Ora não é você que vive dizendo aos seus irmãos de fé que é discípulo de
São Tomé?
Visivelmente encabulado Jorge respondeu:
— Sim senhor!
— E você não gostaria de ver para crer se o seu perdão efetivamente serviu
para auxiliar na libertação do espírito que se manifestou a pedi-lo
calorosamente na gira?
— Gostaria de ver, mas não para crer, apenas para auxiliar.
— E por que não?
— Por que na última gira eu aprendi a ver pelos olhos do coração.
— Bela resposta meu filho, demonstra sabedoria.
— Na verdade eu não sei se conseguiria perdoar aquele irmão se o senhor não
tivesse me doado um pouco da sua energia.
— Mas não foi a minha energia que o fez perdoar!
— Não!
— Não. A minha energia só clareou os caminhos para que você pudesse enxergar
a luz do perdão divino que existe não só dentro de ti, mas de cada ser
humano.
— Entendo.
— Usando um dos meus atributos eu enviei-lhe uma energia rompedora que o
auxiliou a romper tristezas, mágoas e ressentimentos que estavam a obstruir
o teu acesso ao caminho do perdão.
— Puxa que lindo!!!
— E então vamos?
— Estou as suas ordens!
E Jorge, acompanhado do caboclo Rompe-mato, foi até a região umbralina
interligada ao espírito que se manifestara na gira do terreiro a suplicar o
perdão dele.
Havia uma espécie de complexo prisional e eles pararam em frente à cela onde
se encontrava o referido espírito, mas este não conseguia vê-los. Foi então
que a entidade disse a Jorge:
— Vou densificar o seu corpo astral para que o irmão encarcerado possa
vê-lo. Não procure dialogar com ele, apenas abra as grades e liberte-o!
— Sim senhor!
Jorge, assim, tornou-se visível ao espírito que, fortemente emocionado,
bradou:
— Ernesto! Graças a Deus! Louvado seja Deus! Vejo que de fato você me
perdoou! Saiba que muitos se ofereceram para abrir este portão, mas eu tinha
que recusar! Eu só poderia sair daqui e ser um homem realmente livre se o
meu leal amigo de outrora julgasse que eu merecesse ser liberto por meio do
seu perdão e você veio, você veio! Louvado seja Deus!
Jorge percebeu que o portão não possuía tranca alguma e então o empurrou
para que a cela fosse aberta.
O caboclo pedira-lhe que não travasse nenhum dialogo com o espírito
encarcerado e olhar para aquele ser maltrapilho e que exalava odores fétidos
era terrível para Jorge, mas foi procurando manifestar a essência divina do
amor e do perdão que havia encontrado dentro de si que Jorge abriu
amorosamente os braços e, procurando vencer a náusea, disse para o
ex-encarcerado:
— Venha meu irmão, abraça-me!
Saindo de dentro da cela agradecendo a Deus pelo tamanho infinito de Sua
misericórdia o espírito caminhou com passos inseguros em direção a Jorge e
encaixou-se perfeitamente nos seus braços que se apertaram em torno dele com
uma força de sinceridade tão pungente que acabaram levando ambos a copiosas
lágrimas.
Após alguns instantes eles se soltaram e o espírito foi para uma zona de
refazimento energético-espiritual acompanhado por um espírito que ele
chamava amorosamente de “mãe”.
O caboclo, então, levou Jorge de volta a sua residência após aplicar-lhe uma
descarga energética desagregadora de fluidos perniciosos.
Após estes procedimentos Jorge resolveu perguntar a entidade:
— “Seu” Rompe-mato o senhor permitiu que eu tivesse esta experiência só por
que muitas vezes eu duvidava se aqueles obsessores e sofredores realmente
estavam manifestados nos médiuns que lhes cediam o corpo e a mente nas giras
do terreiro?
— “Só” filho? Você diz “só”? Por que você se julga tão pouco assim meu
filho?
— Hein? Desculpe-me, mas como?
— Filho, entenda que uma pirâmide não prescinde da menor de suas pedras, que
uma corrente jamais será a mesma se um dos seus elos se partir e que,
portanto, a força mental, a dedicação, o carinho e a prece de cada filho de
fé é imprescindível para que a caridade possa ser praticada no andamento de
uma gira, está entendendo?
— Sim senhor!
— Em uma gira você não é mais e nem menos importante que qualquer irmão de
fé ou entidade: você é tão importante quanto! O próprio mestre Jesus foi
quem disse isto só que nessas palavras: “ Vos sois deuses, se tiverdes fé
fareis coisas mais fantásticas das que eu fiz”; então, quem é este caboclo
para desmentir o mestre eterno e amado?
— Entendo.
— Mas a experiência desta noite não aconteceu somente por este motivo, mas
também para acabar com quase dois séculos de culpa, dor e sofrimento, certo?
— Sim senhor!
— Então vá meu filho! Retorne ao seu vaso corpóreo por que já é dia e o sol
que está nascendo vem a despertar-lhe para os seus compromissos enquanto
espírito encarnado!
— Sim senhor!
— Salve Deus!
— Para sempre seja louvado!
de Eternos Aprendizes da Umbanda
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| Att. Ricardo Zapparoli |
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